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Transfusão sanguínea em cães

Transfusão sanguínea em cães


Introdução



A terapia transfusional é indicada para pacientes em diferentes condições de saúde, incluindo anemia, hemorragia, coagulopatia e hipoproteinemia. Após ser coletado do cão doador, o sangue pode ser imediatamente transfundido em um animal receptor, ou pode ser fracionado em hemocomponentes. No entanto, a utilização segura dos componentes sanguíneos requer o conhecimento dos grupos sanguíneos e dos meios para minimizar o risco de reações transfusionais, incluindo o teste de compatibilidade e triagem de cães doadores sadios. Tanto o sangue total quanto os hemocomponentes podem ser usados logo após a coleta como também podem ser usados após serem armazenados. Os hemocomponentes são preparados através de centrifugação ou por aférese. Embora a transfusão sanguínea seja considerada como uma terapia capaz de salvar vidas, ela pode resultar em reações transfusionais que poderão causar a morte do animal. Mesmo com a realização do teste de compatibilidade e da tipagem sanguínea, ainda sim podem ocorrer reações transfusionais. 

Conceitos de transfusão
A transfusão sanguínea é considerada uma forma de transplante, onde o sangue é transplantado do doador para o receptor, com intuito de aumentar a capacidade de oxigenação e de reestabelecer os valores normais de proteínas e plaquetas de coagulação. Transfusão é definida como uma terapia intravenosa com sangue total ou hemoderivados.
O sangue total é aquele que não foi fracionado em vários produtos, e os hemoderivados são os produtos obtidos através da centrifugação e separação do sangue total.
 
 
Seleção de doadores
Os cães doadores devem ser adultos saudáveis, entre um e oito anos de idade, com peso mínimo de 27kg e temperamento dócil. Vacinação e vermifugação devem estar atualizadas, e os animais devem estar livres de ectoparasitas. Além do exame físico antes da doação, deve-se investigar se o cão doador está livre de possíveis doenças vinculadas pelo sangue, devem ser negativos para Ehrlichia canis, Babesia canis, Dirofilaria immitis, Borrelia burgdorferi, Brucella canis e Leishmania sp. A realização de um hemograma completo com contagem de plaquetas devem ser feitos a cada doação sanguínea. Os cães podem doar 450mL de sangue a cada 21 ou 28 dias sem suplementação de ferro. O máximo de volume que um cão pode doar sem suplementação de ferro é de 16 a 18 ml/kg. O cão pode doar uma média de 22 ml/kg de sangue a cada 21 a 28 dias, mas nesses casos recomenda-se a suplementação com ferro. Os cães que doam grandes volumes sanguíneos regularmente devem ser suplementados com sulfato ferroso.

Os doadores não podem ter sido submetidos à transfusão de sangue e devem passar por exame físico de rotina, bem como exames hematológicos e bioquímicos do soro. Devem ser vacinados e não deverão apresentar hemoparasitas e outras doenças infecciosas. Fêmeas caninas e felinas doadoras devem ser nulíparas e castradas. A maior parte dos cães não requer sedação ou anestesia, porém, se necessário pode-se usar tranqüilização para contenção dos animais. Os cães podem doar cerca de 15 a 20% do volume sanguíneo. Calcula-se o volume sanguíneo estimado com a seguinte fórmula: Volume sanguíneo estimado (Litros) = 0,08 – 0,09 x peso (Kg); ou seja, o máximo a ser doado é 16 a 18 mL/Kg. Os cães podem doar a cada 3 a 4 semanas, desde que recebam nutrição balanceada em quantidade adequada.
 
Grupos sanguíneos
A classificação dos grupos ou tipos sanguíneos está relacionada com os antígenos espécie-específicos presentes na superfície das hemácias. O cão possui 8 grupos sanguíneos diferentes identificados como antígenos eritrocitários caninos (DEA). A transfusão dos tipos sanguíneos incompatíveis DEA 1.1 e 1.2 pode resultar em hemólise. Felizmente, são raros os anticorpos pré-formados contra estes determinantes.
 
Teste de Compatibilidade
 A tipagem sanguínea é eficaz na identificação dos antígenos presentes nas hemácias do paciente, porém não detecta os anticorpos presentes entre o paciente e o doador, o que será determinado pelo teste de compatibilidade. Um resultado compatível não significa necessariamente que o doador e o receptor possuem o mesmo tipo sanguíneo, mas indica que não foram detectados anticorpos no soro do receptor contra as hemácias do doador, e não detecta anticorpos contra plaquetas e leucócitos, previnindo apenas a ocorrência de reação transfusional hemolítica aguda e não as demais reações imunológicas. O teste de compatibilidade deve ser realizado antes da transfusão, mesmo que tenha sido feita a tipagem sanguínea. No teste de compatibilidade maior, as células do doador são incubadas junto ao soro do receptor, e vão detectar a formação ou não de anticorpos contra as hemácias do doador. Quando incompatíveis, ocorre a aglutinação. Por estes motivos, o melhor seria sempre realizar a transfusão autóloga, onde o receptor e o doador são os mesmos, eliminando a incompatibilidade imunológica. Porém este tipo de transfusão não é possível, e o paciente deve então receber o sangue de um doador.

O procedimento descrito no quadro é o teste de compatibilidade maior que avalia a aglutinação macroscópica e microscópica com solução salina, realizado na maioria dos laboratórios veterinários.
Quanto à Doação
A coleta do sangue é feita através da veia jugular, e o animal normalmente fica em decúbito lateral. Antes da doação, aconselha-se palpar a veia e em seguida realizar a assepsia do local. Durante a doação, o bom estado do doador deve ser constantemente monitorado (coloração das mucosas, pulso, frequência respiratória). O comportamento também é um importante indicador de potenciais problemas que possam ocorrer durante o procedimento. A bolsa de sangue deve ser frequentemente homogeneizada durante a doação para evitar a formação de coágulos. A doação dura em torno de 3 a 10 minutos com vácuo e de 5 a 15 minutos sem vácuo em cães.

Coleta
O sangue total é coletado em bolsa de sangue contendo CPDA-1 (citrato-fosfato-dextrose-adenina) como anticoagulante, que são as mesmas bolsas disponíveis comercialmente para bancos de sangue humano. O volume ideal de sangue para cada bolsa é de 450mL em razão da proporção sangue:anticoagulante. Caso seja necessário coletar um volume menor de sangue, deve-se ajustar a proporção de anticoagulante antes da venopunção (63mL de CPDA-1 para cada 450mL de sangue). Essas bolsas garantem um sistema fechado de coleta e separação, minimizando o risco de contaminação bacteriana (GOMES, 2008). O sangue deve ser coletado assepticamente por meio de venipuntura jugular. Os doadores não devem ser sedados com acepromazina, pois esse medicamento interfere na função plaquetária (THRALL, 2006).
A coleta deve ser feita com agulha de grosso calibre, conectada a um equipo e ao frasco coletor ou bolsa plástica à vácuo (BABO, 1998). Alguns cuidados devem ser tomados durante o procedimento, como procurar fazer a coleta quando o animal estiver em jejum de 12 horas para evitar a formação de rouleaux que pode complicar o teste de compatibilidade e pode ainda causar ativação plaquetária. Realizar pressão no local da venipunção após a doação durante 2 a 5 minutos para acelerar o processo de coagulação, observar o animal após a doação por 15 a 30 minutos (fraqueza, mucosas pálidas, pulso fraco e outros sinais de hipotensão), realizar soroterapia, se necessária, com solução salina ou soluções cristalóides similares para reposição do volume doado, dividindo as doses para não causar hemodiluição imediata. Procurar fazer com que o animal receba ração industrializada e água após a doação e recomendar ao proprietário que evite exercícios físicos intensos com o animal por alguns dias.

Produtos Sanguíneos
Após o sangue ser colhido em bolsas contendo anticoagulante, seus diferentes componentes podem ser processados (papas de hemácias, plasma fresco congelado, plasma congelado, crioprecipitado, crioplasma pobre e plasma rico em plaquetas). As indicações e doses para cada hemocomponente estão descritas no Quadro 03.


 
Sangue Total Fresco e Sangue Total Estocado
O sangue total é considerado fresco até 8 horas após a coleta e em temperatura ambiente (20 a 24ºC), após este período ele passa a ser chamado de sangue total estocado, e deve ser mantido refrigerado (2 a 6oC), e permanece viável por 35 dias quando mantido em CPDA-1. O sangue total fresco contém hemácias, plaquetas, fatores de coagualção e proteínas séricas, e após 2 a 4 horas de refrigeração, as plaquetas não estão mais viáveis (GOMES, 2008). O sangue total fresco ou estocado tem como principal indicação a hemorragia aguda, com a finalidade de repor as hemácias e restabelecer a volemia. Porém pode-se usar sangue total fresco ou estocado em animais anêmicos e trombocitopênicos. Já em pacientes trombocitopênicos não anêmicos, o sangue total é contraindicado, devendo-se utilizar neste caso o concentrado de plaquetas. A administração do sangue total deve ser feita em até 4 horas para diminuir o risco de contaminação e colonização bacteriana. A velocidade de administração recomendada é de 0,25ml/kg na primeira hora, e em seguida passar para 10 a 20ml/kg/h em pacientes normovolêmicos. Em pacientes cardiopatas ou nefropatas, o cuidado deve ser maior por conta do risco de sobrecarga circulatória, e nestes casos a velocidade de administração deve ser reduzida para 2 a 4ml/kg/h.
 
Papas de Hemácias
O concentrado de hemácias ou papas de hemácias é obtido na primeira centrifugação do sangue total, deve ser mantido refrigerado (2 a 6ºC), e permanece viável por 20 dias quando mantido em CPDA-1. Está indicado para pacientes com hemorragia crônica, eritropoiese ineficiente e hemólise, ou seja, são pacientes anêmicos normovolêmicos. A transfusão de hemácias é normalmente indicada quando os valores de hemoglobinas estiverem abaixo de 7g/dL.
O concentrado de hemácias tem uma vantagem em relação ao sangue total fresco ou estocado, pois repoem a mesma quantidade de hemácias contida na bolsa, porém com menor volume, beneficiando os pacientes cardiopatas e nefropatas. O volume de uma bolsa de papas de hemácias tem entre 250 e 300ml, e o hematócrito varia de 55 a 80%, dependendo do hematócrito do doador, do volume de plasma residual e da quantidade de solução preservativa presente na bolsa. Para diminuir a viscosidade e facilitar o fluxo sanguíneo, o concentrado de hemácias deve ser diluído com NaCl a 0,9% aquecido antes do uso (10ml de NaCL a 0,9% para 30 a 40ml de concentrado de hemácias), e a velocidade de administração deve ser a mesma recomendada para o sangue total.
Concentrado de plaquetas
O concentrado de plaquetas é obtido através da centrifugação do plasma rico em plaquetas.
A bolsa de concentrado de plaquetas contém volume de 50 a 70ml, tem duração de 5 dias e deve ser mantida em temperatura ambiente (Figura 09) e em constante agitação.
A indicação primária do concentrado de plaquetas é para pacientes trombocitopênicos. Por ser de menor volume, quando comparada com o sangue total e papas de hemácias, permite a transfusão de grandes quantidades de plaquetas sem a transfusão simultânea de eritrócitos ou plasma, diminuindo os riscos de reações transfusionais
Se a perda ou disfunção plaquetária está provocando sangramento contínuo indica-se transfusão de concentrado de plaquetas.
A transfusão de plaquetas pode ser terapêutica, quando há sangramento e a contagem de plaquetas for inferior a 50.000/ µL, e profilática para prevenir o sangramento, principalmente quando o animal for passar por algum procedimento cirúrgico.


Plasma Fresco Congelado, Plasma Congelado e Crioprecipitado
O plasma fresco congelado (figura 10) é obtido pela centrifugação do sangue total, e deve ser armazenado a menos 20oC em até 8 horas após a coleta para que possa preservar suas propriedades. Após centrifugar o sangue total, o plasma é transferido para uma bolsa satélite, com auxílio do extrator de plasma (figura 11). Suas características como fatores de coagulação, albumina, antitrombina, proteínas e antiproteases permanecem viáveis por até um ano. Após um ano de armazenagem o plasma é denominado plasma congelado, pois diminuem as atividades de alguns fatores de coagulação, mas preserva albumina e imunoglobulinas. O crioprecipitado é obtido pelo descongelamento lento do plasma fresco congelado, em temperatura de 1 a 6oC com posterior centrifugação.

Reações Transfusionais
A ocorrência de reações transfusionais pode ser diminuída seguindo as normas apropriadas do uso de produtos sanguíneos. Um dos métodos mais importantes para evitar uma reação é minimizar a transfusão de produtos desnecessários ao paciente. Após a decisão de iniciar uma terapia transfusional, o clínico deve escolher cuidadosamente o hemocomponente a ser transfundido. Estudos recentes na medicina humana e veterinária têm documentado um grande decréscimo do uso do sangue total, relacionado com grande aumento do uso dos hemocomponentes fracionados do sangue para terapia transfusional específica. As manifestações clínicas e o tratamento das principais reações transfusionais. As reações transfusionais são caracterizadas como imunológicas ou não imunológicas, sendo posteriormente divididas como de ocorrência aguda ou tardia. Uma reação aguda ocorre mais comumente imediatamente ou horas após a transfusão, porém, em alguns casos pode ser manifestada após 48 horas.

Reações Transfusionais Imunológicas Agudas
– Reação Transfusional Hemolítica Aguda
As manifestações clínicas associados com a hemólise aguda transfusional podem ser muito variáveis. Os animais podem apresentar durante ou após a transfusão: pirexia, com aumento de 1º C, taquicardia, salivação, tremores, fraqueza, êmese, dispnéia, colapso agudo, hipotensão, convulsões e taquicardia/bradicardia. Nenhum destes sinais é patognomônico de hemólise aguda, porém, a observação de possível falência renal com diminuição do débito urinário, hemoglobinemia e hemoglobinúria podem ser indícios mais fortes, mas podem não ser diagnosticados com pequeno volume transfundido.
O complexo antígeno-anticorpo formado entre as hemácias transfundidas e os anticorpos do receptor estimula a ativação de vários sistemas. Além do complemento, antígeno-anticorpo, ativa o fator XII, que ativa o sistema de coagulação intrínseco, contribuindo para que substâncias trombóticas sejam liberadas de leucócitos e plaquetas. Os fosfolípides liberados da degradação da membrana eritrocitária possuem atividade pro coagulante, favorecendo a ocorrência de CID. A hemólise como fator individual não é capaz de acarretar em CID. A liberação de citocinas por monócitos ativados também contribui para trombose. A transfusão de sangue incompatível pode levar a formação de micro trombos em rins, pulmões e capilares intestinais. Freqüentemente pode ser observada diarréia sanguinolenta secundária a trombose intestinal.
Substâncias vasoativas causam dilatação arteriolar e aumento da permeabilidade capilar, levando a hipotensão. Catecolaminas, como a norepinefrina, são produzidas pelo sistema nervoso simpático e liberados pela medula adrenal, em resposta a hipotensão. Estas catecolaminas acarretam em vasoconstrição renal, intestinal, pulmonar e cutânea. A formação de trombos pela CID, somada a vasoconstrição agrava os danos aos tecidos, resultando em falência aos órgãos vitais. 

– Reação Transfusional Hemolítica Tardia
A reação de hemólise tardia resulta da opsonização das hemácias transfundidas por anticorpos IgG presentes no doador, com conseqüente destruição destas células pelo sistema monocítico fagocitário no fígado e no baço.
Este tipo de hemólise, diferentemente da hemólise que ocorre dentro dos vasos sanguíneos, é caracterizada como hemólise extravascular. Em cães a hemólise tardia pode ser observada entre 3-5 dias após a transfusão. A hipertermia é um dos sinais clínicos mais comumente observados, mas a anorexia e icterícia também podem ser notadas.
Deve ser realizado o teste de compatibilidade sempre anteriormente ao procedimento, desde a primeira transfusão para cães e gatos, pois os grupos antigênicos não estão totalmente esclarecidos e os anticorpos formamse em cerca de 4-10 dias após a sensibilização. É importante salientar que baixos títulos de anticorpos podem não ser detectados no teste de compatibilidade, e a reação de hemólise tardia poderá ocorrer mesmo com um resultado compatível. Um teste compatível significa apenas que não foram encontrados anticorpos direcionados aos antígenos eritrocitários nas hemácias.

 

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